A decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de descriminalizar o porte de maconha para consumo pessoal deixa em um “limbo” a abordagem feita por policiais e o como será encaminhamento de usuários da droga.
A avaliação de especialistas ouvido pela CNN é a de que a medida tende a beneficiar pessoas de classe média que usam a erva e a ter um impacto limitado para grupos já discriminados, como negros e moradores de periferias.
Um dos fatores que contribuí para este cenário é a manter a competência das polícias e da Justiça criminal para tratar dos casos.
Até que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) delibere sobre o tema, policiais continuam podendo abordar pessoas usando maconha, levá-las para a delegacia e apreender a droga.
Mesmo não sendo mais crime, portar maconha para uso continua ilegal. Entenda aqui a decisão do STF.
Considerar a prática uma infração administrativa significa que o usuário ainda pode enfrentar punições como advertência sobre os efeitos das drogas e medida educativa de comparecimento a cursos determinados pelos Juizados Especiais Criminais.
Especialistas ouvidos pela CNN disseram que a adoção de um critério relativo para determinar quem é usuário (porte de até 40 gramas de maconha) mantém uma insegurança sobre essa classificação ao valorizar a palavra do policial.
Isso deixa uma margem aberta para o enquadramento como tráfico, a depender das circunstâncias da apreensão.
Já pessoas ligadas a policiais e órgãos de segurança pública veem a decisão do STF com preocupação e como uma forma de restringir a atuação dos agentes.
Há um temor de que a descriminalização contribua para incrementar as atividades do tráfico de drogas.
Decisão
O Supremo terminou na quarta-feira (26) o julgamento em que decidiu que não é mais crime comprar, guardar, transportar ou portar maconha para consumo próprio. Será considerado usuário quem tiver até 40 gramas de cannabis sativa ou seis plantas-fêmeas.
Pessoas com quantidade menor da droga ainda poderão ser enquadradas como traficantes, se ficar constatada a presença de elementos que demonstrem um comércio da substância, como balança, registros de operações de venda, aparelho celular com o contato de usuários ou traficantes e as “circunstâncias da apreensão”.
Esse critério vale até que o Congresso Nacional aprove uma outra forma de diferenciação.
Palavra do policial
Para o juiz Luis Carlos Valois, do Tribunal de Justiça do Amazonas (TJ-AM), a descriminalização tende a melhorar a situação da classe média que consome a droga e o faz em locais onde abusos policiais são menos frequentes.
“Essa decisão não serve nada para o pobre, o preto, da favela”, afirmou. “Na medida em que o Judiciário dá valor acentuado à palavra da polícia, quando o policial disser que a pessoa [abordada] correu, correr é indício, se ela estava em local de tráfico, periferia é local de tráfico, são circunstâncias que a polícia cria”.
Conforme o magistrado, ao se deixar essa discricionariedade na mão da polícia, “sobra racismo, preconceito e violência de classe”.
Pesquisador do direito penal e atual juiz titular da 9ª Vara Cível e de Acidentes do Trabalho, Valois atuou por 26 anos na Execução Penal. Para ele, a descriminalização contribui para tirar o estigma do consumo de maconha na sociedade.
“Tira aquele peso do próprio tabu relacionado à droga. Vai diminuindo”, disse.
Muda pouca coisa
O advogado criminal Cristiano Maronna vai no mesmo sentido. Para ele, o Supremo “abriu uma porta” para manter a situação que existe hoje, “que é a palavra do policial como uma espécie de rainha das provas”.
O especialista, que é diretor do Justa, organização que atua no campo da economia política da justiça, disse que a continuidade do procedimento criminal para lidar com os casos de uso de maconha “mostra que nesse primeiro momento vai mudar pouca coisa”.
O rito envolve a abordagem pela polícia, o encaminhamento para a delegacia e a análise pelo Juizado Especial Criminal – até que venha uma nova regulação do CNJ.
“A insegurança sobre a classificação entre usuário e traficante, embora tenha reduzido um pouco, ainda continua a existir”, declarou.
“Quando a presunção é relativa e pode ser afastada na hipótese de outras circunstâncias, como o modo de acondicionamento da droga, balança, tudo isso é o que a gente chama de testemunho policial ou provas a ele ancoradas”.
Segundo Moronna, enquadrar alguém como traficante deveria pressupor uma investigação qualificadas com a corroboração por meio de provas. “No Brasil, a regra é que os condenados por tráfico portem quantidades compatíveis com uso pessoal e só haja policiais como testemunhas de acusação”.
“Seria importante que o STF estabelecesse parâmetros e diretrizes de como o policial pode agir. Estamos nesse limbo em que se corre o risco de uma situação que já era ruim, piorar”.
“Tráfico à varejo”
A delegada Raquel Gallinati, secretária de Segurança Pública de Santos e diretora da Associação dos Delegados de Polícia do Brasil (Adepol), disse à CNN que a falta de definições pelo STF deixou num “limbo” a caracterização do porte para consumo como ilícito administrativo.
Ela afirmou que a decisão dos ministros “interfere” nas disposições da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e do Legislativo.
Para Gallinati, a fixação de 40 gramas de maconha como critério para presumir o consumo na prática autoriza o “tráfico à varejo”.
Segundo a secretária, a quantidade representa “mais de 30 trouxinhas” da droga. “É impossível isso não ser caracterizado tráfico”, declarou.
“Quando você libera o porte de droga nessa quantidade para uso pessoal, automaticamente, está sendo, de forma tácita, liberado o tráfico de drogas”, afirmou. “Como você vai adquiria uma droga que é ilícita hoje, para consumir e em quantidade significativa, se não for de um traficante?”.
Por entender que a decisão do STF causa restrições à atividade policial, Gallinati vê o fomento ao “caos no sistema de justiça criminal e no combate ao tráfico de drogas”.
Reduz arbitrariedades
Presidente do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP), o juiz Douglas de Melo Martins disse à CNN que a decisão do STF contribui para reduzir arbitrariedades ao diminuir o “subjetivismo dos critérios” usados para a distinção entre usuário e traficante.
Magistrado com atuação na área criminal há mais de duas décadas Martins disse que o CNPCP ainda não tem uma posição oficial a respeito da decisão da Corte, e que o órgão se manifestará de forma técnica depois de debater o assunto internamente.
Para o juiz, a atual política de drogas no país “contribui em grande medida para o encarceramento em massa, sem que isso tenha resultado em mais segurança pública”.
“Deslocar a política de drogas do âmbito penal para o da saúde é medida fundamental para que possamos alcançar melhores soluções para o problema”, declarou.
Segundo dados de 2023 da Secretaria Nacional de Políticas Penais (Senappen), 852 mil pessoas cumprem pena no Brasil (650 mil em celas físicas).
O crime de tráfico de drogas é de longe o mais comum no sistema prisional brasileiro. Do total da população carcerária, 199.198 estão presos pelo delito (que inclui as tipificações de associação para o tráfico e tráfico internacional de drogas).
Martins também disse que a possibilidade de prender suspeitos de tráfico com menos de 40 gramas de maconha vai requerer aos agentes públicos “um ônus argumentativo mais intenso”, já que o afastamento da presunção de que se trata de porte para uso pessoal “exigirá justificativa detalhada, sendo vedada a utilização de critérios subjetivos arbitrários”.
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