Em tramitação na Câmara dos Deputados, o projeto de lei (PL 1904/24) que equipara o aborto realizado apĂłs 22 semanas de gestação ao crime de homicĂdio simples poderia permitir que uma mulher vĂtima de estupro que interrompesse a gravidez tivesse pena maior do que a do estuprador, segundo especialistas consultados pela CNN.
A pena para o crime de homicĂdio simples – definido pelo CĂłdigo Penal como quando se mata alguĂ©m – varia de 6 a 20 anos de prisĂŁo.
Já a pena para estupro vai de 6 a 10 anos, podendo chegar a 12 anos se a vĂtima for menor de 18 anos e maior de 14 anos, destaca a advogada Flávia Pinto Ribeiro, presidente da OAB Mulher Rio de Janeiro.
“Isso significa que, em um cenário hipotĂ©tico, uma mulher adulta vĂtima de estupro que interrompa a gravidez apĂłs a 22ÂŞ semana poderia ser condenada a uma pena mais severa do que a do estuprador”, explica a advogada.
A Câmara dos Deputados aprovou na quarta-feira (12) a urgência do projeto. Com isso, o texto poderá ser analisado diretamente pelo plenário da Casa, sem necessidade de passar por comissões temáticas.
Na avaliação de Flávia, a discrepância entre as eventuais penas dos agressores e das vĂtimas de estupro Ă© “profundamente problemática”.
“Ignora os direitos e o bem-estar da mulher, alĂ©m de refletir um sistema jurĂdico que muitas vezes penaliza mais severamente as mulheres do que os homens por questões relacionadas ao controle de seus prĂłprios corpos”, afirma.
A advogada criminalista Fayda Belo, especialista em Crimes de GĂŞnero, Direito AntidiscriminatĂłrio e FeminicĂdios, considera a hipĂłtese uma “aberração jurĂdica”.
“Estamos vivendo um retrocesso que chancela o quanto temos um legislativo misógino que tenta, a todo custo, inferiorizar e punir as mulheres”, disse.
AlĂ©m de classificar como uma medida desproporcional, a especialista chama a atenção para a maneira como a medida poderia afetar de forma mais crĂtica mulheres de classes mais baixas.
“[Caso seja aprovado] o que teremos será mais um instrumento para penalizar e encarcerar mulheres pobres, em sua maioria negras – que são aquelas que não detêm acesso a recursos”, analisa.
Para a especialista, seria mais prudente que o Poder Público “tente uma maneira realmente eficaz de evitar abortos que não seja a criminalização, como educação sexual, planejamento familiar, amparo as mulheres gestantes e acessos a contraceptivos”.
Sócia da Escola Brasileira de Direitos das Mulheres, a advogada Mariana Tripode defende que “a diferença nas penas evidencia uma desproporcionalidade que não apenas ignora as circunstâncias extremamente traumáticas que a mulher enfrenta, mas também envia uma mensagem preocupante de que o sofrimento e os direitos das mulheres são secundários em relação ao feto”.
O que define a lei hoje
Atualmente, o CĂłdigo Penal define que:
- Se a gestante provocar um aborto ou consentir que o provoque: pena de um a trĂŞs anos em regime semi-aberto ou aberto;
- Se alguém provocar um aborto sem o consentimento da gestante: pena de três a dez anos em regime fechado;
- Se alguém provocar um aborto com o consentimento da gestante: pena de um a quatro anos em regime fechado;
- Se, devido ao processo abortivo, a gestante sofrer uma lesão corporal grave, as penas para terceiros são aumentadas em um terço. E se resultar em morte, duplicada.
Médicos e gestantes que se submeterem a eles para procedimentos de interrupção da gravidez de fetos anencéfalos (sem cérebro) não são enquadrados pelo Código Penal.
O aborto legal também é reconhecido quando “não há outro meio de salvar a vida da gestante” ou quando a gravidez é resultante de estupro.
O que o projeto prevĂŞ
O projeto de lei visa equiparar as penas aplicadas para os crimes de homicĂdio simples e aborto em casos de gestações acima de 22 semanas.
Em casos de estupro em que a gestação transcorre há 22 semanas ou mais, o projeto também prevê a aplicação da equiparação.
Sobre os procedimentos abortivos em casos de anencefalia do feto ou risco Ă saĂşde da gestante, fica mantido o que prevĂŞ atualmente o CĂłdigo Penal.
Constitucionalidade do projeto
Segundo especialistas consultados pela CNN, a constitucionalidade do projeto de lei Ă© discutĂvel.
“A Constituição Federal garante a dignidade da pessoa humana como um dos princĂpios fundamentais do paĂs. É possĂvel, por esse raciocĂnio, apontar a inconstitucionalidade do projeto de lei, a impor um tratamento degradante a mulher vĂtima de estupro”, avalia o advogado Enzo Fachini, especialista em Direito Penal.
Por outro lado, a “interpretação do direito à vida em relação ao feto é tema juridicamente complexo. Só a partir de um julgamento concreto pelo STF poderemos afirmar a inconstitucionalidade do projeto de lei”, salienta Fachini.
Fayda concorda com o argumento da dignidade da pessoa humana e relembra que a Constituição Federal determina como direito fundamental, “ou seja, irremovĂvel, irrenunciável e que nĂŁo pode ser suprimido inclusive pelo legislador, a nĂŁo submissĂŁo de nenhum brasileiro a tratamento desumano e degradante, bem como a igualdade de gĂŞnero”.
AlĂ©m dos pontos levantados pelos especialistas, a advogada Gabriela Souza, que tambĂ©m Ă© sĂłcia da Escola Brasileira de Direitos das Mulheres, destaca que o projeto esbarra em outras legislações do paĂs, “como o CĂłdigo Penal, que determina aborto em casos de estupro. TambĂ©m viola tratados internacionais, que tĂŞm a força de regra constitucional, como a Convenção de BelĂ©m do Pará”.
Para o advogado criminalista Rafael Paiva, o projeto não é “inconstitucional em uma primeira análise”, porém “poderá vir a sofrer questionamentos de inconvencionalidade, eis que claramente viola os preceitos da Convenção Americana de direitos humanos, da qual o Brasil é signatário”.
*Com informações de Henrique Sales Barros e Rebeca Borges, da CNN
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