Por Vinícius de Oliveira
Nas universidades brasileiras, um conceito vem ganhando cada vez mais força: o racismo ambiental. Ocorre quando moradores, principalmente negros, enfrentam dificuldades para acessar os centros urbanos. Vivem na periferia e morros, muitas vezes sem transporte público de qualidade, financiamento adequado ou segurança. A falta de infraestrutura faz com que sejam mais afetados por desastres ambientais, como enchentes ou ondas de calor intenso. Ou frio exagerado.
Um exemplo claro dessa realidade é a ocupação D. Waldyr, no Belmonte. Quem conhece o local sabe como é duro viver ali. Para os moradores, majoritariamente negros, as chuvas intensas não passam despercebidas, pois a enchente costuma levar seus poucos pertences. Outro ponto delicado é o abastecimento de energia elétrica. “Um único poste distribui luz para todas as casas. O valor é único, e dividido pelos moradores. Queremos que a Light resolva esse problema e precisamos da intervenção do prefeito”, avalia Liliane Cerqueira, líder comunitária da ocupação Dom Waldyr.
Liliane lembra que, pelo menos, água potável não é um dos problemas, porque a ocupação está situada muito próxima às margens do Rio Paraíba, na chamada Beira-Rio. Mas a fossa com esgoto a céu aberto na entrada da ocupação ainda é um vetor de doenças, um ataque ao meio ambiente e um retrato nítido do racismo ambiental com o qual os moradores do D. Waldyr convivem.
Mas, ao longo dos sete anos de existência, nada foi mais cruel para os moradores do que a Covid. As famílias só sobreviveram graças à solidariedade dos movimentos sociais. Hoje, com 55 núcleos familiares vivendo no local, os moradores compartilham histórias de resistência desde a infância. Foi convivendo com esse cotidiano que a pesquisadora Ana Cabral da Universidade Federal Fluminense de Volta Redonda, junto ao Grupo de Pesquisa em Desutilidades Urbanas (GPDU-UFF) desenvolveu uma metodologia de diálogo e criação com as crianças da ocupação na confecção de um livro infantil com um título que aquece o coração: ‘Onde o sonho pode morar: receitas de cidades e infâncias em ocupação’.
Lançado recentemente na Flip, o livro não apenas aborda questões sociais que tocam o racismo ambiental, mas também apresenta, por uma aposta na força da fabulação, modos como as infâncias ensinam a construir cidades mais justas.
Ana, professora do departamento de Psicologia da UFF, tanto em Volta Redonda quanto em Niterói, é psicóloga e doutora em Planejamento Urbano pela UFRJ, e sustenta um interesse na produção de um conhecimento feito com os territórios e as infâncias. “No GPDU desenvolvemos o projeto de extensão ‘Oficinas de Montagem’ que, aliado ao Observatório de Direitos Humanos do Sul Fluminense (UFF-VR), promove o diálogo entre a universidade, os movimentos sociais e os territórios. Trabalho há quatro anos com a ocupação Dom Waldyr, diretamente com as crianças e com as mães e mulheres líderes, e vejo as infâncias como mestras e mestres de seus territórios e fazedoras de cultura. Havia por parte da Ocupação o desejo de se montar uma biblioteca comunitária, mas, como
o espaço estava em obras, ano passado surgiu a ideia de as crianças se tornarem autoras de livros que ocupariam a cidade por meio de bibliotecas e outros espaços culturais”, explica Ana.
O livro, criado junto às crianças a partir de oficinas de experimentação estética, coordenadas por Ana, tem o potencial de fazer da literatura um instrumento de transformação social. É uma obra feita por crianças e para crianças, mas que todos os adultos deveriam ler, especialmente aqueles que querem refletir sobre políticas urbanas, direitos humanos e acessibilidade”, pontua.
Com receitas simples e a ajuda de uma alegre capivara, as crianças constroem sonhos para uma cidade mais acolhedora, onde tanto elas quanto os adultos seriam felizes. “Elas (as crianças) produziram imagens que foram trabalhadas pelo grupo de pesquisa. Tomamos essas experiências conjuntas como matéria- prima do livro e, com ela, escrevi o texto. As ilustrações são das crianças e de uma ex-aluna e integrante do grupo, Milena Pedrosa”.
“O livro traz as receitas de como se constrói uma rua, uma casa… E, no final, como se constrói um livro. Intercalando essas receitas, há a história de uma menina e uma capivara que se encontram e falam de uma relação de afeto com o território, com todos os seres que dele fazem parte, e compartilham seus sonhos por uma vida digna e mais feliz, onde as infâncias têm lugar”, adiantou Ana. O livro conta também com os prefácios do filósofo Renato Noguera e da educadora social Bel Mayer, que trazem seu olhar sobre a infancialização e a relação das infâncias com a literatura.
Embora o livro já tenha sido apresentado ao público na Flip, a data oficial para o lançamento em Volta Redonda ainda não foi divulgada. Ana espera agilizar tudo até o fim do ano. “Lançamos pela Editora Patuá, na Casa Gueto da Flip, e fizemos uma oficina junto à comunidade caiçara de Trindade. Esse pré-lançamento teve o objetivo de criar uma maior visibilidade para o livro e ampliar com novos financiamentos sua tiragem. Estamos organizando o lançamento oficial até o fim do ano, em Volta Redonda, com as crianças autografando como autoras deste trabalho. Já estou emocionada só de imaginar esse momento”, finaliza Ana, cheia de expectativas.